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Maturação em queijos
Consumidos puros ou acompanhados por um bom vinho, os queijos são alimentos fantásticos, sobretudo devido aos tão diversos atributos sensoriais que podem apresentar, fazendo com que sejam apreciados por uma vasta gama de consumidores. A maravilha da arte e da ciência queijeira reside justamente no fato de que a partir de um mesmo leite se chegue a queijos tão variados e com características tão próprias. Para a formação da personalidade de um queijo, a menos que se trate de um produto fresco, uma etapa de maturação torna-se essencial. Esse ritual de “envelhecimento” leva em conta o tempo, a temperatura, a umidade e as condições ambientes para que, a partir de complexos processos bioquímicos, ocorra a revelação dos sabores, aromas e texturas de interesse.
Queijos de casca lavada
Quando se trata de condições de maturação, a categoria dos queijos de casca lavada torna-se um assunto à parte, uma vez que se difere das demais por conta do tratamento especial recebido pela casca durante a cura, sendo frequentemente lavada com uma solução chamada “morge”, geralmente composta por salmoura, soro de leite e microrganismos halofílicos (naturalmente presentes ou intencionalmente adicionados), podendo ainda conter urucum ou bebidas alcoólicas. Além disso, são maturados sob condições especiais de temperatura (entre 12 e 20 °C) e umidade relativa (acima de 95%), propícias ao pleno crescimento da microbiota de interesse.
O termo “queijo de casca lavada” no jargão queijeiro, deriva-se do francês “fromage à croute lavée” e se refere a queijos que apresentam, tipicamente, casca meio alaranjada ou amarronzada e sabor e aroma acentuados e bem particulares. Durante a maturação, os queijos são esfregados várias vezes com a “morge”, com a finalidade de conservar a umidade da casca do queijo e incentivar o desenvolvimento de uma microbiota superficial, responsável pelo sabor, aroma e textura característicos deste tipo de queijo. É válido ressaltar que nesses queijos a maturação ocorre da casca para o centro, o que é chamado de maturação centrípeta, e ocorre por meio do desenvolvimento de uma flora superficial transitória, geralmente marcada por uma sucessão de grupos de microbianos.
Classificação e exemplos de queijos dessa categoria
Há uma extensa variedade de queijos de casca lavada, com diferentes texturas e intensidades de sabor e aroma, a depender da técnica empregada. Dessa forma, podemos agrupá-los em três categorias: queijos moles, duros e semiduros. Os queijos moles são predominantes entre os queijos de casca lavada, tais como o Reblochon, Livarôt e Epoisses (ambos franceses), o Taleggio (italiano) e o Limburger (de origem belga). Esses queijos possuem maior teor de umidade e, consequentemente, textura mais cremosa e odor mais marcante, ao passo que os queijos de massa dura e semidura possuem textura mais firme e odor menos intenso, uma vez que são submetidos a tratamentos mais moderados, interrompidos a tempo de se formar uma casca mais escura, seca e um pouco enrugada, mas sem a melosidade característica de alguns queijos moles. Os queijos duros mais conhecidos dessa categoria são o Gruyère e Appenzeller (suíços) e o Beaufort e Comté (franceses). Dentre os semiduros podemos mencionar o Brick (estadunidense), o Raclette (suíço), o Port-Salut e o Morbier (franceses).
Podemos ainda dividir, didaticamente, essa categoria de queijos em três linhagens, baseando-nos nos microrganismos predominantes na casca do queijo após finalizada a maturação. Nesse sentido, queijos como o Epoisses e Maroilles (franceses) apresentam uma coloração muito avermelhada, característica da prevalência de Brevibacterium linens na casca desses queijos. Queijos como o Reblochon e Pont-l’Évêque (também franceses) apresentam, por sua vez, como característica principal a forte coloração branca, com um aspecto aveludado e por vezes enrugado, característico do predomínio de Geotrichum candidum. Há ainda queijos de casca lavada em que prevalecem alguns fungos filamentosos mais rústicos, de outras colorações, como o Trichothecium roseum, o Mucor racemosus, o Fusarium domesticum, etc. Desses podemos citar os queijos Saint-Nectaire e Tomme de Savoie (também franceses).
Fundamentos da elaboração de queijos de casca lavada
Os queijos de casca lavada são fabricados na maior parte das vezes com culturas mesofílicas homofermentativas, sendo a coalhada aquecida a temperatura baixa (< 35 °C), seguida de uma leve prensagem e, normalmente, são salgados em salmoura após a enformagem. Antes de se seguir para a etapa de maturação, é recomendado que o queijo esteja com um pH mais baixo (por volta de 4,9), e, além das lavagens frequentes, faz-se necessária a manutenção de um ambiente muito úmido (cerca de 95% de umidade relativa) e uma temperatura controlada entre 12 e 20 °C. Viragens frequentes e uma boa ventilação do ambiente também são condições necessárias para o adequado crescimento dessa microbiota, uma vez que a flora que se desenvolve sobre esses queijos é essencialmente aeróbica. O tempo de maturação é muito variável, de 14 a 63 dias.
Após a salga, inicia-se então um tratamento na casca com uma solução de água e sal (às vezes contendo corante urucum) e geralmente preparações comerciais contendo diferentes combinações de Brevibacterium linens, Debaryomyces hansenii e Geotrichum candidum. A lavagem da casca garante uma distribuição uniforme de microrganismos sobre a superfície do queijo. Em geral, o crescimento torna-se visível na superfície dentro de poucos dias de maturação. Os ingredientes de base da “morge” são água e sal, sendo importante utilizar água de boa qualidade e sem cloro. A quantidade de sal depende do tipo de queijo, podendo variar de 5% até 35% (solução saturada). A “morge” contribui com o teor de sal final do queijo, visto que uma parte acaba sendo absorvida pela massa, sendo necessário considerar este fator para que o queijo não fique salgado demais.
Quando utilizada uma solução com baixo teor de sal pode-se favorecer a presença de microrganismos indesejados e ser fonte de contaminação cruzada. Por outro lado, uma “morge” mais concentrada seleciona e estimula o desenvolvimento da flora halotolerante, fundamental nesses queijos. Neste caso, porém, a casca tende a ficar mais úmida e o queijo mais salgado.
Tradicionalmente, a inoculação dos microrganismos de superfície ocorre pela lavagem periódica dos queijos com a “morge” começando dos queijos mais velhos para os mais novos. Dado que esses microrganismos são comuns em ambientes de fábricas de queijos, esse esfregaço visa transferir esses microrganismos da superfície de um queijo para outro, auxiliando no desenvolvimento da microbiota externa. Atualmente, contudo, o uso de fermentos comerciais é mais recomendado, pois tem menor risco de contaminação e garante maior homogeneidade entre lotes.
A frequência do tratamento depende muito do que se busca em intensidade do produto. Geralmente se inicia com o tratamento 5 dias após a entrada do queijo na câmara, para que o sal seja bem distribuído para o seu interior, fazendo com que sua concentração na casca seja reduzida, sempre visando o crescimento inicial do G. candidum. Os queijos são, em geral, tratados 2 a 4 vezes por semana.
Se porventura for de interesse conter o desenvolvimento dessa microbiota, no sentido de se evitar a formação de uma casca muito melosa ou muito espessa, por exemplo, é indicado levar os queijos para uma câmara mais seca (80% URA) e mais fria (8 °C) por até 2 semanas, e interromper ou reduzir a frequência do tratamento da casca. Eventualmente os queijos poderão ainda ser embalados.
Embora a maioria dos queijos de casca lavada seja fabricada geralmente com fermento mesofílico, o seu sabor é determinado principalmente pelo crescimento da microbiota de superfície. Por meio da forte atividade enzimática destes microrganismos, as cadeias de peptídeos são quebradas em aminoácidos, e a degradação dos aminoácidos sulfurados, como a metionina e cisteína, acarreta a liberação de compostos sulfurados como o metanotiol, fenóis e indol, responsáveis por conferir um odor pungente, característico dessa categoria de queijos.
Para se atenuar o desenvolvimento de características muito intensas de sabor e odor, alguns produtores de queijos brasileiros de casca lavada utilizam somente salmoura e urucum na “morge”. Desta forma, o processo deixa a casca do queijo com a cor alaranjada característica, porém, com um aroma mais suave.

Evolução da flora microbiana na casca do queijo
Tendo a casca uma abundância de ácido lático, rapidamente se inicia o crescimento de algumas leveduras halotolerantes, principalmente dos gêneros Kluyveromyces, Debaryomyces, Saccharomyces e Candida. Logo nas primeiras horas, as leveduras começam a desacidificar o meio. A partir de então, começa o crescimento de Geotrichum candidum, sendo que seu crescimento só se acelera com o aumento do pH. A casca do queijo gradualmente se desacidifica em razão da degradação do ácido lático e da desaminação dos aminoácidos com liberação de amônia, e isso permitirá a implantação de outra flora bem menos resistente à acidez e também influenciará na atuação das enzimas, importantes na maturação.
Geotrichum candidum, considerado uma forma intermediária entre mofo e levedura, é um organismo bastante sensível ao sal (máx.1,5% sal), fazendo com que a salga seja importante para se selecionar o meio; tem temperatura ideal de crescimento entre 15 e 25 °C, sendo inibido em baixas temperaturas (~4 °C); é aeróbico e necessita de ambientes muito úmidos (URA > 90 °C); metaboliza o ácido lático, aumentando o pH da casca; e possui intensa ação lipolítica e proteolítica.
As leveduras, para além do aumento do pH, produzem compostos que estimulam o crescimento das bactérias da superfície, dentre os quais incluem produtos de proteólise e vitaminas sintetizadas por elas mesmas (por exemplo, ácido pantotênico, niacina, riboflavina), e são responsáveis ainda por conferir uma série de atributos sensoriais aos queijos por meio da degradação de proteínas (proteólise) e de lipídeos (lipólise), pelo desenvolvimento de aromas e aparência.
Após o crescimento das leveduras e do G. candidum, e a consequente elevação do pH, ocorre o crescimento de bactérias. Os Staphylococcus e Micrococcus (não patogênicos) crescem geralmente no início da maturação, seguido pelas bactérias corineformes. Este grupo pode crescer em presença de até 10% de sal e em pH ainda inferior a 6,0, e também atuam elevando o pH da casca.
O aumento do pH favorece o crescimento de uma flora bacteriana contendo microrganismos corineformes. Bactérias corineformes é um termo coletivo para o grupo de Arthrobacter, Brevibacterium, Microbacterium e Corynebacterium, que estão presentes em alto número na superfície dos queijos de casca lavada. Alguns desses microrganismos são pigmentados, conferindo a coloração vermelho-alaranjado característica desses queijos.
Brevibacterium linens é uma bactéria aeróbica e halotolerante que possui forte atividade proteolítica e lipolítica, contudo, para que comece a crescer sobre um queijo, seu pH deve ser superior a 5,8, sendo esse microrganismo, portanto, muito dependente de uma flora desacidificante, anterior a seu próprio crescimento. Sua temperatura ótima de crescimento situa-se entre 20 e 30 °C, desenvolvendo-se somente em temperaturas superiores a 10 °C. O crescimento dessa bactéria é estimulado por vitaminas produzidas pelas leveduras.
A casca alaranjada, característica marcante destes queijos, é devida ao desenvolvimento de B. linens, principal microrganismo na superfície da maioria dos queijos de casca lavada. Brevibacterium linens apresenta proteinases extracelulares associadas à parede celular e intracelulares, o que é fundamental para os processos de formação do sabor e aroma tipicamente intensos dos queijos moles de casca lavada. Além disso, apresenta a capacidade de produzir diferentes bacteriocinas e pigmentos para desenvolvimento da cor nos queijos. É válido ressaltar a existência de distintas variedades de B. linens, que produzem diferentes pigmentos, com tons que variam desde o marrom, alaranjado até o avermelhado.
Alguns desses microrganismos podem também ter algum impacto sobre queijos que são simplesmente curados em condições de umidade muito alta, como o Camembert. Além disso, B. linens, por exemplo, por conta de sua abundância em ambientes de fábricas, como salmouras e câmaras frias, frequentemente contaminam a casca de outros queijos.
Pontos críticos para a fabricação dos queijos de casca lavada
– Os queijos moles devem ser pequenos, de preferência menor que 1 kg, a fim de se atingir os níveis esperados de proteólise;
– O teor de umidade inicial para se produzir um queijo mole deve ser alto (> 52%);
– O pH inicial deve ser muito baixo (cerca de 4,8) e o teor de sal menor que 1,5, para que haja um bom desenvolvimento da flora desacidificante;
– É necessário que a câmara de cura seja bem ajustada quanto à umidade do ar (> 90%) e temperatura (12 a 20 °C) e com boa circulação de ar.
Desafios e perspectivas dos queijos de casca lavada no mercado brasileiro
Embora os queijos de casca lavada ainda sejam pouco conhecidos no Brasil, e que o fato de consumir queijos com aparência e odor tão incomuns cause ainda um certo estranhamento a uma parcela dos brasileiros, a presença de exemplares nacionais e importados desses queijos tem sido cada vez mais comum nas prateleiras de supermercados e empórios especializados. Além dos importados, queijos como o Piazinho, produzido pela Pé do Morro, o Dionísio, da fazenda Santa Luzia e o queijo Serra do Lopo, da Capril do Bosque, são alguns exemplos de queijos autorais da categoria dos queijos de casca lavada produzidos em solo nacional.
É notório que o consumo de queijos tem passado por mudanças significativas nos últimos anos. Há, atualmente, um nicho do mercado que vem se interessando cada vez mais por queijos mais especializados e com maior personalidade, o que faz com que esses queijos sejam considerados grandes apostas para o mercado queijeiro brasileiro, gerando uma nova opção para as indústrias que produzem e comercializam queijos finos.
Escrito por: Hysrael de Sales Rodrigues
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Referências:
COSTA, R. G. B.; COSTA JUNIOR, L. C. G.; PAULA, J. C. J.. Queijos de casca lavada-uma revisão. Revista do Instituto de Laticínios Cândido Tostes, v. 64, p. 26-31, 2009.
CRISCIONE, Disney. A história do queijo. Queijos Tirolez.
FERMENTECH. Webinar Fermentech: Queijos de Casca Lavada – Bate-papo com Múcio Furtado. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=AHVDHHslB_c&t=242s&ab_channel=Fermentech>. Acesso em: 28 dez. 2022.
FURTADO, M. M.. Os queijos de casca lavada: Elaboração do Reblochon. GuiaLat, 2018. Disponível em: <https://www.guialat.com.br/?p=detalhar_noticia&id=2656>. Acesso em: 29 dez. 2022.
FURTADO, M. M.. Queijos Semiduros. São Paulo: Setembro Editora, 2018.
McSWEENEY, P.L.H. Cheese problems solved. Cambridge: Woodhead Publishing, 2007. p.388.
MONTANHINI, M. T. M.. Queijos de casca lavada. Milkpoint, 2022. Disponível em: <https://www.milkpoint.com.br/colunas/maike-tais-maziero-montanhini/queijos-de-casca-lavada-230056/>. Acesso em: 29 dez. 2022.
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